sábado, dezembro 16, 2006

Capítulo 1

As crianças de Brilhossol não conheciam o espetáculo da chuva, inexistente na cidade. Suas vidas se faziam no seco, no morno e aconchegante carinho dos raios do sol: esse prato dourado que dependuraram no meio do azul.
Conta tio Abelardo que ele é o olho de Deus a cuidar de todos aqui embaixo. Tio Abelardo, que mora no alto da Rua das Mangueiras, passa todo o dia, com exceção das horas do almoço e do jantar, sentado à soleira da porta de sua casa contando histórias, ou melhor, contando uma só e grande história que sempre se repete sem nunca ser igual. Memoráveis discussöes entre adultos houve na praça central sobre "de como foi que disse Seu Abelardo". Mas como "quem conta um conto aumenta um ponto", nunca se podia comprovar se fora tio Abelardo que modificara a história ou se o fizera a pessoa que a estava recontando. Era só um dos ouvintes protestar:
- Não foi assim que eu escutei o tio Abelardo contar não -,
e logo começavam as acusaçöes:
- Que vergonha, te pegaram numa mentira, heim? -,
e o outro logo se defendia:
- Que mentira que nada, se posso jurar por tudo que quiserem que estou contando a história tal qual ouvi.
A culpa era sempre daquele que recontava, pois tio Abelardo, a mais antiga personalidade de Brilhossol, seu habitante mais sábio, jamais poderia ser acusado de um falseamento, de uma mentira, por menor que fosse. O tempo, que baralha a memória, era fator também que contribuía aos enganos. Tio Abelardo contava histórias às crianças de Brilhossol, e desde o tempo da infância, muito do contado podia ter-se perdido na lembrança. O único adulto que se atrevia a acusar tio Abelardo de distorçöes nas histórias era Josias:
- Quando eu digo que esse tio Abelardo muda as histórias... -,
ao que imediatamente todos reagiam:
- Lá vem você de novo acusando o tio Abelardo, querendo insinuar más intençöes naquele que nos educou a todos com os seus ensinamentos. Você deveria se envergonhar!
Josias não se atrevia a ir além. Calava-se, mas continuava firme em suas idéias. Tinha para ele que tio Abelardo provavelmente sofria de um problema crônico de memóia. Não questionava o grande valor de seus ensinamentos, nem se atrevia a pensar que o homem mudasse as histórias por maldade, não, isso não podia ser. Afastava essa idéia sempre que ela lhe vinha à cabeça. Mas que o velho modificava as histórias, isso modificava mesmo. Mas como discutir não é um hábito que se deva cultivar em Brilhossol - principalmente se há crianças por perto -, Josias não insistia. Em Brilhossol não se abordava o tema das versöes da história de tio Abelardo na frente das crianças: Discussöes não eram exemplo para se dar a elas, além do que, podiam tirar-lhes o gosto das horas de distração e instrução junto ao velho sábio.
Mas onde está tio Abelardo, nesse dia de festa de Brilhossol? Está à porta de sua casa. Na frente dele, sentados em semicírculo, sentindo aquele calorzinho gostoso que o sol deixou no piso da calçada, estão as crianças escutando. Tio Abelardo conta um de seus episódios mais freqüentes: o da chegada do sol à cidade. Conta como tudo se iluminou quando o sol, por primeira vez, movido pela curiosidade, espichou alguns de seus raios para as bandas de Brilhossol.
A cidade, ou melhor, o lugar onde seria mais tarde a cidade, não passava então de um simples descampado pantanoso, húmido, sem vida e sem alegria, povoado apenas de sombras tristes e folhas mortas. O primeiro raio de sol, ao deslocar uma sombra, conversou com a terra escondida daquele lugar e lhe disse da muita alegria e do amor que tinha para lhe oferecer. E consolou-a da sua grande tristeza, fruto somente da solidão. A terra ainda argumentou, desiludida, que não acreditava mais que pudesse ainda ser feliz. Mas tudo não passava de resistência, essa resistência que se tem de tentar, por puro medo de não conseguir algo que se quer muito. E com o amor do sol, a vida voltou à terra e brotaram plantas frondosas e surgiram animais saltitantes e aves canoras. E o riso da terra voltou a ser visto cintilante por baixo da água do rio.
- Sim, porque saibam - dizia tio Abelardo - que aquele brilho que ofusca o olho nas águas do rio é o riso da terra que mostra seus dentes de ouro e diamantes. E assim nasceu essa Brilhossol maravilhosa que nós amamos tanto!
E tio Abelardo parou de falar neste ponto. Todo mundo em silêncio esperava que ele continuasse, mas ele não perecia querer prosseguir. Todos esperavam, menos Soluço, que olhava concentrado a casa da prefeitura do outro lado da rua. Com o ar pensativo e um dedo erguido a meio esticar, o menino, começou a dizer:
- E de onde veio todo o resto? Quem, então, construiu as casas e o parque, quem é que fez a prefeitura?
E tio Abelardo, como se já conhecesse ou previsse há muito tempo a pergunta, respondeu prontamente:
- Seu Lauzanio, filho. Seu Lauzanio, grande mestre de obras, e seu filho Lauzaninho, vieram para ver o riso da terra na beira do rio e ficaram.
Novamente o silêncio. Tio Abelardo fumava seu cigarrinho de palha e olhava para o chão. E aproveita Pimenta a oportunidade de falar - uma das coisas de que ela mais gosta de fazer - e diz:
- Seu Lauzanio foi em casa ontem pra levar uns tijolos pro meu pai.
- É, filha, eu também me lembro de Seu Lauzanio levando tijolos para meu pai. Todos se lembram - respondeu tio Abelardo.
Os Lauzanios ali sempre estiveram para cuidar de todas as obras e reformas de Brilhossol. A sucessão de Lauzanios era quase imperceptível para quem acompanhasse a substituição dos pais por seus filhos na mesma função de pedreiro. Todos os Lauzanios eram tão incrivelmente parecidos, idênticos mesmo, que as pessoas nunca sabiam se aquele com quem falavam era o pai, o filho ou o neto do último Lauzanio que havia feito alguma obra em sua casa. Mas ninguém se importava absolutamente com isso em Brilhossol. Todos os Lauzanios mereciam o mesmo respeito e carinho por parte da população da cidade. Afinal onde é que toda essa gente ia morar se não fossem os Lauzanios? E por toda parte sempre se ouvia, depois de qualquer consideração sobre uma casa:
- Grande Lauzanio! O que seria de nós sem ele?
E sempre que havia qualquer problema, um reboco caído aqui, uma rachadura ali, já se ouvia alguém lá dizer:
- Mande chamar o Lauzanio.
Mas chega de tanta conversa, porque é hora do almoço e a primeira mãe já desponta na janela da casa em frente com seu retumbante "tá na mesa!", chamando o estômago faminto da criançada. Segundos depois, outros "tá na mesa" vão surgindo como eco: na rua ao lado, no outro quarteirão, três quadras para frente, e assim por toda a cidade. A gurizada toda é unânime e responde com um impassível "tô indo" que leva no mínimo uns quinze minutos mais, quando então voltam a soar os ecos maternais.
Tio Abelardo a esta hora não estica conversa: vai logo dizendo a todos que não devem desobedecer às suas mães, e que alimentar-se é importantíssimo para crescer e ficar forte. Mas todos detestam deixar as histórias pela metade e pedem que conte "mais um pouquinho"...

domingo, dezembro 03, 2006

Uma história infanto-juvenil

Queridos amigos,

há alguns anos venho escrevendo uma história infanto-juvenil intitulada Na terra do céu. Passo a publicá-la, em entregas, nesse blog e gostaria de contar com os seus comentários para poder melhorá-la. Grande beijo e obrigada, desde já, pela sua leitura.



Na terra do céu


Introdução


Hoje é um dia muito muito especial. Dia de festa, de bandeirinhas penduradas entre os postes das ruas, de música nos autofalantes, de doces coloridos, de liberdade em voz alta. É o dia do aniversário de Brilhossol, uma cidade muito falada pelo mundo a fora, mas raramente visitada. É um dia mágico, especialmente para as crianças, um dia que, por uma graça divina, caiu bem no meio das férias.
E não há lugar no mundo onde as férias sejam mais extensas e inesquecíveis do que em Brilhossol.

E se esta cidade é tão maravilhosa assim, porque não vão todos para lá, como seria natural de se pensar? Porque ela não se transformou numa metrópole para onde toda criança e adulto querem se mudar? Uma cidade onde as férias são quase intermináveis e completamente inesquecíveis não deveria estar cheia de gente?

Acontece que o acesso a ela é bastante difícil. Ela está no fim de todos os caminhos, na conjunção de todas as cores e de todas as luzes; ela é, diz toda a gente, a pérola perdida de todos os povos do mundo, o pote de ouro no fim do arco-íris. E como não é todo dia que se forma um arco-íris para se seguir, as pessoas acabam não podendo visitar a cidade. Quando acontece dele se formar, a pessoa não pode naquele dia, noutro dia ela pode, espera e nada de arco-íris. E há de se considerar que é comum que se passem meses e até anos sem que se veja no céu um só arco-íris. Desta forma, a atividade turística na cidade é certamente nula e os habitantes de Brilhossol chegam mesmo a se assustarem quando aparece algum forasteiro. Quando isso se dá, a cidade toda se transforma e ocorre uma verdadeira revolução no seu funcionamento normalmente pacato e tradicional. A gente toda modifica seu comportamento, tão grande é a repercussão da chegada do estrangeiro. Este, impressionado com aquele tesouro perdido, nem consegue acreditar no que lhe aconteceu. E de volta à sua terra, acaba convencendo-se de que tudo não passou de um sonho maravilhoso ou então pertence a um passado longínquo, situado lá na sua mais tenra infância, que só poderia existir através de lembranças. Quase todos os pouquíssimos estrangeiros que conseguiram encontrar essa maravilhosa cidade sofriam dessa espécie de amnésia. Mas havia aqueles que, fascinados pela cidade, decidiam ficar e abandonavam tudo para poderem continuar vivendo no brilho e na perfeição perenes de Brilhossol.

Mas como íamos dizendo, hoje é dia de festa em Brilhossol. Felizmente não há nenhum forasteiro de passagem, pois com a festa já se tem agitação suficiente para esta pacatíssima cidade, onde tudo costuma estar em seu devido lugar. As festas em Brilhossol são uma tradição de tanto tempo que não se sabe nem desde quando. Da fundação da cidade tem-se notícia apenas através de um livro muito grosso e antigo, que não traz data, mas no qual há uma descrição do local que, com poucas modificaçöes, continua correspondendo à Brilhossol atual.

Mas antes de ver esta festa tão bonita, vamos falar um pouco mais da cidade, da gente da cidade, da vida da gente da cidade de Brilhossol.